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Entre as desejadas potencialidades naturais do Brasil e as pesquisadas mazelas sofridas pelo seu povo há uma riqueza pouco valorizada e explorada: a sabedoria que nasce do nosso chão, concebida na prática da vida. Muitos mestres estão espalhados pelo país, construindo, na peleja pela sobrevivência, na poeira que o viver levanta, um fecundo chão de saberes.

Na intenção de conhecer como vivem e pensam esses mestres, decidi iniciar, no Vale do Jequitinhonha, Nordeste de Minas Gerais, uma incursão à sabedoria brasileira. Viajei com a ideia de, lá, poder ser uma garimpeira. Não fui explorar os recursos minerais do rico solo da região, mas o mundão de possibilidades que brotam do chão humano. Durante as três semanas de minha passagem pela região, conheci gente de muito saber em Araçuaí, Berilo, Chapada do Norte e Diamantina.

Ao tentar garimpar as riquezas de suas percepções, comecei a perceber que é de troca e convivência que o chão se alimenta. Ele é formado por gente e não por deuses. Seu Antenor, um dos fazedores com quem conversei, ensina: “Deus é um sozinho que tem”. No chão, ama-se e se é amado, acolhe-se e se é acolhido, dá-se e recebe-se, perde-se e ganha-se: nele se vive! E com abundância. Nas prazerosas conversas que tive com os fazedores, comecei a compreender: o aprender e o ensinar é uma peleja constante e comum a todos.

Voltar os olhos para o nosso chão pode ser uma experiência reveladora. É que, quando nos limitamos às alturas, deixamos de enxergar, nas sutilezas e miudezas que ensinam vida, a grandeza que tanto procuramos no alto. Colocando os pés na nossa terra podemos descobrir o nosso chão, o chão do Brasil e, mais do que isso: podemos ter um valioso guia na aventura que é o viver.

Terra pode ser poeira, solo, chão, pátria, o “meu lugar”, mundo: são muitos os seus sentidos. Nela produzimos nosso alimento e garantimos o sustento do nosso corpo. Por outro lado, é através dela que sepultamos a existência que ela mesma ajudou a manter. Muitos sentidos brotam da terra, mas é pelo mesmo caminho que todos transitam: o da vida.

Não é apenas no alimento produzido pelo chão que a vida se faz presente. Da relação entre homem e terra nasce um modo de viver, uma cultura. Foi na realidade da roça que Olímpio Rodrigues Soares se construiu e se diplomou alguém. Nascido no município de Chapada do Norte (Médio Jequitinhonha – MG) no ano de 1937, ele conhece o dia-a-dia da lavoura desde bem cedo. “Eu comecei a trabalhar de pequeno e fui continuando”, conta.

Olímpio aprendeu a semear sua existência no mundo quando ainda era menino. Para sobreviver, não teve escolha: precisou transformar a realidade que o castigava em sua aliada, fazer da vivência sua matéria-prima de conhecimento. Sobre a experiência de viver, ele conclui: “A prática engole a teoria, se não tiver a prática. Então, a escola do mundo eu acho que seria a melhor, além do estudo, porque precisa ter, mas a do mundo é boa também”.

Quando Olímpio fala do que a realidade de seu dia-a-dia o fez aprender se refere, também, ao que sua mãe lhe ensinou: “Eu não tinha pai, minha mãe que criou nós. Era bastante filho e ela deu conta de nós tudo criado. Então, a gente deve essa obrigação aos criadores da gente que souberam, no sofrimento, amar a vida”. Mais tarde, na condição de pai, Olímpio pôde prolongar o saber que fez sua mãe encontrar uma maneira de colher solução de um chão de impossibilidades: “Meus filhos foram criados um ajudando o outro, um socorrendo o outro. Isso vem desde esse começo: minha mãe criou nós fazendo do mesmo jeitinho, um vestindo a roupa do outro”, lembra. Os impedimentos do dia-a-dia, no Vale do Jequitinhonha, entrelaçam a vida de cada um e inspiram em todos a vocação do convívio. “A vida da gente é um laço, é uma boia. É uma história muito prolongada”.

Mas não foi somente o modo de viver de sua terra que inspirou seus caminhos na vida. Olímpio precisou reconstruir referências que esse modo de viver ainda não enxergava. Ele percebeu que era preciso, em alguns casos, enveredar suas percepções a uma direção diferente da que já estava traçada. A ele, quando jovem, foi ensinado que, em qualquer situação, era dever ser respeitoso: “Na minha criação, o velho falava e só o novo é que tinha que respeitar, eles não lembravam que o velho tinha que dar respeito, era o novo que tinha que respeitar, sempre era o novo que faltava respeito”. Foi justamente por desconsiderar esse modo de agir dos mais antigos que Olímpio encontrou uma maneira de fazer valer o que lhe era exigido: “O velho tem que dar respeito primeiro para o novo porque se eu não te respeitar, você não vai me respeitar, então eu tenho que começar primeiro a respeitar a pessoa. E esse respeito é que faz crescer e faz amizade e firmeza na vida da família, porque um respeitando o outro, o pai tem respeito ao filho”, diz.

A necessidade de desbravar caminhos em terras ainda inexploradas se impôs como um incessante trabalho para Olímpio, sem garantia de férias, folga, salário. Porém, foi à custa dessa renúncia que ele criou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Chapada do Norte e conquistou outros direitos que lhe pareciam irrenunciáveis. A participação de Olímpio no sindicato, atualmente, é de associado, mas sua permanência na diretoria durou quase duas décadas. “Nesses 18 anos que eu fiquei nesse movimento da sociedade, não tinha nada que eu fazia por dinheiro, eu não tinha salário, minha mulher mais os meus meninos é que trabalhavam, é que faziam a roça. Às vezes eu chegava, ajudava um, dois dias, daqui a pouco ligava um telefone: ‘você tem que tá em Brasília tal dia, você tem que tá em Belo Horizonte tal dia’ e eu nunca senti, pra falar assim: eu tomei prejuízo”, lembra.

A decisão de fundar o sindicato partiu da dificuldade que, certa vez, encontrou para conseguir atendimento médico em Belo Horizonte para uma irmã. No hospital, Olímpio apresentou à funcionária uma comprovação de sua contribuição ao sindicato patronal, acreditando que facilitaria a liberação na internação. Mas o documento produziu um efeito oposto do que ele esperava. A funcionária deduziu que, por Olímpio estar registrado naquele sindicato, era o patrão de sua irmã e, portanto, ela não poderia receber o atendimento. Não fosse Olímpio ter levado seu atestado de pobreza e o número do telefone de um médico que confirmou a carência deles e que eram trabalhadores rurais, a funcionária não teria liberado a internação. Ele reproduz o diálogo com ela: “Por que você paga esse sindicato? Lá não tem trabalhador não? Uai, falei: ‘tem sim’! E por que você paga esse sindicato? Cê tem que ter um sindicato seu: Sindicato do Trabalhador Rural”. A partir daí, deu início à peleja: “Aí eu arregacei a manga da camisa, achei muita ajuda, tinha um padre aqui que ajudou, bispo me ajudou, muitos companheiros me ajudaram”, conta.

A fundação do sindicato era tanto a afirmação do direito de se reconhecerem tal como são, como também uma possibilidade de abrir caminho para a garantia de outros direitos. “Eu tomei coragem, vi que a gente precisava abraçar mesmo. Porque se a gente não abraça, hoje a gente tava vivendo do mesmo jeito que vivia daquela época. Chegava uma pessoa e falava: ‘cê tem que fazer isso!’ Cê tinha que fazer mesmo, não passava a saber se faz bem ou se faz mal. ‘Cê tem que comer isso!’ Tinha que comer mesmo. ‘Cê tem que fazer esse serviço aí!’ Cê tinha que fazer mesmo. Hoje não!”, diz.

Durante sua atividade no sindicato, Olímpio conheceu de perto uma realidade vivenciada por grande parte dos homens de sua região. No Vale do Jequitinhonha, muitos, ainda hoje, migram para outros estados e lá trabalham como cortadores de cana, em busca da renda que não encontram em suas cidades. Quando viu as condições de trabalho nos canaviais, Olímpio ficou desolado. “Conheci coisa de fazer tristeza. Eu chorei, eu falei: ‘isso que é corte de cana!’ Chorei porque meu filho tinha cortado cana”, lembra. Olímpio foi um dos poucos homens do Vale que não trabalhou nessas fazendas. “Eu não cortei cana porque eu já estava no sindicato. Aí eu já fui uma pessoa pra defender esses trabalhadores e nós conseguimos ajudar esses trabalhadores”, diz.

Olímpio no engenho de sua roça: é nela que ele colhe vida

Antes de fundar o sindicato, ele chegou a trabalhar em São Paulo como pedreiro, mas foi por pouco tempo. “Fui duas vezes, trabalhei três meses de cada vez que eu fui. Era eu arrumar a mala e passava desejo. Então, não tá me ajudando, porque se eu não tô devendo, eu vou ganhar dinheiro e passo a dever… Aí parei”, conta. Decidido a deixar de ir a São Paulo, Olímpio encontrou uma solução para ficar de vez em Chapada do Norte: “Eu acostumei a ficar sem dinheiro”.A saída que encontrou não foi exatamente acomodar-se a uma vida de privações. Sua escolha foi a de ficar junto de sua família e, para isso, assim como em São Paulo, era necessário trabalhar duro. Só que o fruto desse trabalho não seria o dinheiro que ganharia na capital paulista, mas a tranquilidade de morar na sua terra. “Fiz um voto a Nossa Senhora Aparecida para me dar um jeito de eu viver aqui e parece que ela falou amém. Fui mexer com as cabecinhas de gado, trabalhando, vivendo só aqui na minha roça, eu mais minha mulher e acabamos de criar nosso filhos”, lembra.

Deixar de migrar para outros estados, como fez Olímpio, era – e ainda é – uma decisão incomum entre os homens de sua região. A renda que lá podem conseguir é capaz de dar o sustento que a roça, sozinha, muitas vezes não pode oferecer. Ele ressalva, porém, que a escolha de abrir mão dessa renda visava apenas respeitar seu modo de pensar: “Não era que eu pensava em querer ser diferente dos outros. Eu não tava querendo fazer diferente deles ou mais que eles. Só que a minha opinião era aquela”.

O fato de ter decidido ficar em Chapada do Norte, longe de destacá-lo dos outros homens, ajudou a manter o “laço” entre eles e a não romper a “história prolongada” do povo de sua terra. Justamente por ter um modo de pensar que, naquela ocasião, não coincidia com o da maioria, pôde voltar à sua cidade e manter um contato ativo com as questões que a cercavam. Não era apenas a sua presença em Chapada que ajudava a conservar o vínculo entre eles. Olímpio lançou mão de novas referências com a intenção de não permitir morrer aquilo que, para ele, precisava ser mantido entre seu povo: a união.

Para Olímpio, conhecer outras formas de pensar foi fundamental para fazer valer o “um pelo outro” da sua terra. Foi com a ajuda delas, inclusive, que ele criou o sindicato e pôde trazer melhorias ao trabalhador rural. “Eu encontrei chance no trabalho da Igreja e no trabalho das pessoas amigas que vinham de fora com outras ideias e saíam com a gente pra fazer pesquisa. Aquilo ali foi me dando gosto, amor. Então, a gente ia aprendendo com essas pessoas”, conta. A intenção era usufruir dessas ideias, porém sem deixar que elas fossem soberanas. As pessoas de fora muito contribuíram para as conquistas do povo de Chapada, explica Olímpio, entretanto isso não as tornava donas da liderança: “A gente tinha as pessoas de mais grau junto com nós, mas quem puxava era a gente, quem chegava e batia na matéria era o sindicato, era o presidente que chegava primeiro”.

Apesar de o líder ser representado por uma pessoa, o modo através do qual exerciam essa liderança reafirmava o sentido de união deles. “Tem que ter essas parcerias. É pra resolver alguma coisa, pra tomar uma decisão, vamos reunir tudo porque, se errar, não erra um só, erra o grupo inteiro. Quando erra um só é mais difícil de resolver e quando erra tudo junto não tem ninguém pra ficar com pavor, que ‘eu sou culpado’”, diz.

Há, entre Olímpio e sua terra, uma bela relação de reciprocidade. Dela, ele retira a resistência para as pelejas da vida e, labutando nela e, por ela, devolve a resistência da qual justamente necessita: “Eu tô com problema de coração, mas quando eu tô dentro da minha roça eu tô são. Então, por isso que eu acho que na roça a gente tem uma fortaleza”. O exercício dessa troca, entretanto, já foi mais prazeroso, ele lembra: “Quando a gente começou aquela vida, a resistência era outra. Antes, tinha uma diferença aqui: a gente trabalhava era cantando. Vinha até à porta do dono da roça, dançava a noite inteira. Cozinhava tudo num tacho grande pra pessoa comer e beber cachaça. Era uma alegria”.

A “resistência era outra” em sua terra, diz Olímpio, mas, ainda assim, mantém com ela a mesma relação de afeto. “Eu amo o meu lugar, eu amo o povo do meu lugar. Até as estradas que eu passo, tem dia que eu tenho saudade delas”, declara. A satisfação em ser simplesmente um pedaço do Vale do Jequitinhonha é o que faz o seu sentimento pelo lugar de onde veio ser inteiro. A Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte é uma forma da cidade, todo mês de outubro, expressar esse amor e de cada um celebrar o que todos são. Atuante na organização da Festa, Olímpio é o Rei dos Mouros e o procurador-geral. Mas também passou por outros cargos: “Eu já fui o presidente, o tesoureiro”.

Todo esforço que Olímpio empregou, especialmente em sua atividade no sindicato, abriu caminhos para que o povo do seu lugar pudesse valer-se daquela conhecida frase: “na minha terra isso tem outro nome!”. Ter o direito de construir sua identidade não era o bastante: era preciso poder expressá-la. “Então a gente passou a saber, passou para o povo que a gente é um brasileiro, que qualquer forma que nós somos, nós somos brasileiros”, diz.

É por essa conquista que, até hoje, Olímpio trabalha. Atualmente, ele é tesoureiro do Campo Vale (Centro de Assessoria aos Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha) e, embora somente associado ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, a diretoria ainda o procura para “tomar orientação”. É requisitado, também, por algumas universidades, onde dá “aula de experiência”.

Para os que vêm agora, ele deixa de herança grande parte do terreno cultivado e o conselho que tomou para si mesmo quando iniciou: “Tomou amor por aquilo que você começa, se parar, toma prejuízo. Por exemplo: você caminhou cinco léguas, se não caminhar aquela uma légua, perdeu as cinco que caminhou. Aí já vai voltar pra trás”. Cabe, aos que darão prosseguimento a essa caminhada, a essa “história prolongada”, saber, como fez Olímpio, enveredar por direções diferentes das traçadas quando necessário. “A pessoa quando tá começando, dá muitas erradas. Dá opinião errada, segue algumas coisas erradas. Só que tudo o que ela errou, tem que valorizar pra não poder errar mais” e não deixar morrer aquilo de onde colhemos
vida: a terra.

Será uma ilusão nossa desejar viver totalmente sem ilusões nesse mundo? Será que somos capazes, mesmo, de sempre driblar e desmascarar as aparências? Ou melhor: é possível viver sem elas? Talvez a vida fosse bem melhor se vivêssemos sem nenhuma fantasia, mas foi um mundo de ilusões que, pelo menos até agora, conseguimos construir.

Gonçalo do Rosário Silva não tem dúvida: “De ilusões se vive”. Morador de Diamantina (Alto Jequitinhonha – MG), ele nasceu em São Gonçalo do Rio das Pedras, distrito de Serro (Alto Jequitinhonha – MG), em 1948. Já trabalhou como vigilante, trocador de ônibus, vendedor de livro. Para ele, não tem outro jeito. Se não tiver a tal da ilusão, fica difícil dar prosseguimento à vida. Ele explica: “O que dá força de, por exemplo, você trabalhar é pensar que, com o seu trabalho, vai poder adquirir uma casa, vai poder construir alguma coisa pra sua família. Bom, mas isso no meu ponto”.

A função das ilusões, para Gonçalo, é dar movimento à vida e não paralisá-la: “Viver não é só comer e dormir! Às cinco e meia da manhã já tô pronto pra o que der e vier. Quer coisa mais bonita do que acordar cedo e ver a claridade?”.

As ilusões, no seu “ponto”, não dão conta de dissimular os infortúnios. “Pensa bem uma coisa na vida: têm os momentos bons, mas eles são muito mais passageiros do que um grande sofrimento, tá na cara que é! Pra mim, sempre foi assim. Agora, tem gente que acha que sofrimento e alegria é uma festa só”, diz.

Apesar de atribuir aos sonhos a razão de nos mantermos vivos, Gonçalo não deixa de admitir a responsabilidade de como devemos lidar com eles. Ao explicar a relação do homem com o mundo, não faz rodeios. A vida, afirma, “tem apenas dois lados: o bom e o ruim. O mau caminho, se quiser, você resiste. Mas aí tem a fraqueza, não é? É que, às vezes, o sujeito leva pra mil anos um trenzinho de nada”.

Gonçalo tem em mente um caminho para a felicidade, entretanto acha inevitável que, em alguns momentos, ela esbarre na realidade da vida. Pai de cinco filhos, ele pondera: “Para ser feliz, a pessoa tem que passear, distrair, mas tudo numa boa também. Cê não vai distrair se a família está com os problemas mais sérios. Mas isso no meu ponto, porque cada um pensa de um jeito”.

No seu jeito de pensar, são os sonhos que fazem nos lançar ao mundo, só que eles não podem ignorar os rumos da vida. “Olha pra saber: de ilusão se vive, mas a realidade tem que ser presente”, aconselha. Não há outro caminho: para que uma não esmague a outra, precisam conviver em harmonia. Até porque, os sonhos não são capazes de impedir as imposições da vida: “No fim, o tempo passou e o sujeito não fez nada, talvez não adquiriu nada, porque viveu só no sonho. Sonhar é bom, mas se o sonho não pode ser realizado naquele momento, parte pra outro”.

De sua experiência, Gonçalo conclui que, por mais que as ilusões sejam necessárias, não dá para fugir daquilo que é, de fato: “A verdade tem que ser dita e não tampada com uma peneira. Uai, o que é que eu posso fazer?”. Os sonhos só nos levam para frente quando descem ao chão e participam do movimento do mundo. Insistir em viver só no sonho ou só com o pé na terra é insistir no erro. E o erro, diz Gonçalo, não tem vez: “Pensa bem uma coisa na vida: o errado não tem voz ativa. O errado nunca teve, não é? Eu acredito que sim”.

Uma coisa é admitir que o errado não tem voz ativa, outra é tentar consertá-lo. Gonçalo observa que o mundo atribui às aparências uma grande importância. Isso, muitas vezes, cria situações de desigualdade. Porém, ele reconhece a impossibilidade de controlar as opiniões alheias: “O cara chega mal-atrapalhado e o outro chega mais bem-arrumado, muito mais bem tratado do que aquele de chinelo de dedo no pé. Talvez a vida não está oferecendo pra ele, né? Esse que tá bem vestido, com certeza, é mais respeitado. Não acho que isso seja certo, mas nessa vida a gente acha e outros acham que não é. Como se diz: a gente não pode mudar a ideia de ninguém”.

Embora as aparências tenham um grande peso nesse mundo, ele não aprecia vestir essa fantasia: “Não adianta eu querer ser aquele que eu não sou. Isso não! Pra que eu vou ser? Não vai resolver os problemas”.

Para Gonçalo, não adianta querer ser aquele que não é e nem fingir não sentir aquilo que se sente. O bem e o mal rodeiam um ao outro até mesmo quando o passado é relembrado. “Você lembrou, é bobagem dizer que não. Quando você lembra do bem, lembra do mal também e vice-versa. Não tem de onde escapar”, observa.

Gonçalo encontrou uma solução para viver bem no labirinto que é esse mundo. Já que não tem de onde escapar mesmo, o jeito é tornar a experiência da vida mais agradável: “Ô coisa boa que é contar mentira. Desde que esteja rindo e brincando, sem prejudicar a família nem a moral de ninguém, vamos contar bobagem, vamos rir que depois que passou, acabou”.

Rir da vida não significa, para Gonçalo, fazer pouco dela. Pelo contrário. É reconhecer nossa incapacidade de controlar os caminhos do mundo. Além do mais, como ele diz: “A vida é um sonho, tudo é passageiro mesmo, nada vai durar para sempre. Só a eternidade é para sempre”.

Na fronteira entre o que aconselha a razão e o que vibra a emoção está, “no ponto” de Gonçalo, o caminho: “Cê é cabeça e coração, os dois quando falam juntos é bom demais”.

As dores, muitas vezes, decorrem dos sonhos frustrados pela realidade. Gonçalo, entretanto, não acha que isso torna a experiência da vida sem valor – “Viver é bom demais”, diz. Para ele, o que torna essa experiência sem importância é justamente fugir das condições a que estamos inevitavelmente submetidos desde que nascemos: a necessidade de buscar a felicidade e a privação de controlar a realidade. É a partir das dores, aliás, que construímos nosso caminho: “O sofrimento ajuda a viver”. Mesmo porque, não temos
saída: “Ilusão é a vida toda”.

Gonçalo, em Diamantina

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Artesã reconhecida, Maria Lira Marques é um valioso pedaço da vasta riqueza humana do Vale do Jequitinhonha. Seu nome em evidência, mais do que lhe dar a satisfação de ver valorizado o trabalho que faz, lhe dá a oportunidade de trazer à luz outros valiosos pedaços dos quais não gosta de se ver destacada.

Lira nasceu no ano de 1945, em Araçuaí (Médio Jequitinhonha – MG), onde mora até hoje. Filha de um sapateiro e de uma lavadeira, ela começou a trabalhar bem cedo. “Desde que eu peguei um tamanhozinho, mãe me pôs para lavar roupa, buscar lenha. Já lavei muita roupa para as famílias com a minha mãe”, conta. Sem água encanada em suas casas, elas e outras lavadeiras compartilhavam o Rio Araçuaí no dever da labuta. “Ia de manhã e ficava na beira do rio”, lembra a artesã.

De sua mãe, Dona Odília Borges Nogueira, não recebeu apenas o dever de ajudar no sustento da família. Na figura dela, Lira pôde assimilar caminhos que driblavam a pobreza material e transmitiam vida. “Minha mãe era uma artista. Ensinava a gente a declamar com gestos: ‘ó minha filha, a gente tem que fazer isso grande.’ Ela tinha muitos dons. Tinha uma voz linda, sabia alguns tons no violão, fazia muitos trabalhos manuais, ensinava a gente a se defender se uma pessoa pegasse a gente. Não conseguiu estudar, mas era uma mulher muito inteligente. Até hoje, eu fico encabulada: como uma pessoa criada sem mãe, lavadeira de roupa, tinha tantos dons artísticos?”, conta. Foi observando Dona Odília mexer com a argila que Lira se iniciou no ofício de artesã. “Ela gostava de fazer a cerâmica na ocasião de Natal. Ela fazia os presepinhos e dividia com as famílias aqui. Ia chegando o Natal, falavam: ‘Odília, faz um presepinho’”. Nas horas vagas do serviço de lavadeira, Lira mexia com o barro. Seu trabalho com o artesanato foi, com o tempo, ganhando reconhecimento até que conseguiu fazer dele o ofício de onde tira o sustento. Sua mãe morreu em 1998, porém não deixou para ela o luto, mas a herança da vida: “Eu amo aquilo que eu faço. Isso é o que me dá vontade de viver”.

A resistência e a coragem de Dona Odília frente às adversidades foram um dos estímulos que fizeram Lira desabrochar como artista. Assim como sua mãe, ela consegue, através da arte, romper o bloqueio que inibe o povo do Vale de expressar sua beleza. Sua respeitável obra é feita com o chão do seu nem sempre valorizado sertão: as máscaras são moldadas no barro da região e a terra com que pinta os desenhos dos quadros ela mesma, pesquisando, colhe em Araçuaí.

Lira é também uma das vozes do Coral Trovadores do Vale, fundado em 1970 por ela e Frei Chico, padre holandês que está no Brasil desde 1968. Com o Frei, Lira construiu uma profunda amizade e parceria. O encontro entre eles lhe gerou, além do ofício de cantadora, o de pesquisadora. A criação do Coral se deu, inclusive, por causa do esforço dos dois em um amplo trabalho de pesquisa sobre a cultura do Vale. “Nós gravamos 250 fitas com cantigas de roda, cantigas de ninar, cantos de pedir esmola, cantos de beira-mar, cantos sobre a educação da criança. E não ficou só nesses cantos, mas também sobre a agricultura, como plantar, quais os tipos de milho que existem, como é que planta a mandioca, quantos tipos de mandioca têm, como é que faz uma casa, tudo sobre os remédios, as rezas, tudo, tudo o que você imaginar”, diz.

Composto por moradores da região, os Trovadores do Vale entoam canções cuja autoria pertence a todos. “O Coral canta as músicas do povo – que a gente pergunta com quem aprendeu, ‘ah aprendi com a minha mãe, com a minha avó, com meu tio’ – do domínio público”, explica.

Por conta do trabalho como pesquisadora e no Coral, Lira era convidada para participar como jurada do Festivale – festival que acontece anualmente no Vale do Jequitinhonha. Para julgar as canções, saber enxergar a beleza que brota do chão era o que mais valia: “Eu não estudei música, mas eles me convidavam pela minha sensibilidade. Geralmente é um lavrador que fazia a música. Às vezes, tá falando do próprio Vale, da sequidão, da planta, do amor. E eu entendia isso muito bem, graças a Deus”.

O trabalho no Coral que lhe dá a oportunidade de celebrar a cultura do Vale em festivais também a leva para caminhos que muito fazem seu povo sofrer: as fazendas de cana-de-açúcar. Se por um lado os canaviais proporcionam a renda que a sequidão e a falta de emprego tiram dos homens do Vale do Jequitinhonha, por outro trazem tristeza por deixá-los longe de suas cidades e de suas famílias. O Coral, por vezes, viaja para os estados onde esses homens vão trabalhar como cortadores de cana e lá faz apresentações na intenção de levar um pouco do Vale para eles. “Aparece muita gente chorando”, conta.

As apresentações revelam o contraste entre a alegria e a tristeza do Vale do Jequitinhonha: uma terra que, ao mesmo tempo em que produz uma cultura rica que a liberta do sentimento de desvalorização, está exposta à pobreza que submete seu povo a condições sufocantes. “É o que eu sempre bato na tecla: tem sim esse lado bonito, mas a gente não pode achar que tudo tá bonito porque você tá vendo os ônibus levando pessoas e depois essas pessoas ficam desprezadas”, pontua Lira. Ela tem dois sobrinhos que trabalham nos canaviais. Um deles, por causa da maneira de cortar a cana, está com uma parte do peito para frente.

De sua terra, Lira é, assim como muitos outros valiosos pedaços do Vale do Jequitinhonha, um pouco filha e um pouco mãe: é acolhida e acolhe. Do modo de viver que lhe abraça, colheu, com Frei Chico, riquezas para ajudá-lo a reuni-las no Abecedário da religiosidade popular – Vida e religião no Brasil, livro de autoria dele e da antropóloga Lélia Coelho Frota. Deixou-se colher pelos Ícaros do Vale, companhia de teatro de Araçuaí, para ser acolhida na peça Maria Lira que o grupo produziu sobre sua vida.

Ter o acolhimento da admiração dos outros é, para ela, uma grande satisfação. “A gente poder fazer alguém feliz com um trabalho manda você pra frente. Todo mundo gosta de ser reconhecido quando é uma coisa sincera. Nossa Senhora, isso me dá muita felicidade”, diz. Mas é sendo um pedaço do Vale, é no cultivo do modo de viver local, junto com sua gente, que ela se faz uma artista inteira.

As famosas máscaras em cerâmica de Lira

Quem é como o artesão Zé do Ponto, nascido e criado no interior, não gosta de ser sozinho. Ninguém se constrói sem ninguém, assim ele aprendeu a pensar. Zé nasceu em Chapada do Norte (Médio Jequitinhonha – MG), no ano de 1949, com o nome de José Sebastião Vaz. Passou a conhecer melhor a vida que gosta quando começou a trabalhar na roça do seu pai. “Com 12 anos já estava na luta. Mexia com plantação, fazia lavoura”, conta. A função de lavrador proporcionou a ele, além do aprendizado de um ofício, um modo de vida que dava espaço para seu interior falar. “Eu gostava demais. Pra mim, era o meu prazer. Eu nem pensava, naquele tempo, em namorada. Pensava mais em ter amizade, no diálogo com os amigos”, recorda.

Zé firmava, na lida, laços que só uma conversa de íntimo para íntimo pode construir. “Tinha aqueles amigos que a gente contava um caso e morria ali. Era amigo mesmo. Cê podia sumir, ficar um, dois anos fora que, quando você voltava, era o mesmo amigo. A pessoa tinha aquela amizade profunda com a gente”, lembra. Depois, porém, que “o pessoal começou a andar no mundo, a conhecer como é lá fora”, o interesse em conhecer o que há dentro do outro foi diminuindo. “Hoje você pega uma amizade, quando é amanhã a pessoa tá olhando você de lado”, diz.

Nas cidades grandes, Zé diz não ver as pessoas partilhando-se umas das outras. Elas se trancam, não se deixam desvelar. “Lá fora ninguém dá muita confiança para o outro. É aquele negócio: ninguém conhece ninguém”. Já em Chapada, a possibilidade de contato com alguém desconhecido é motivo de satisfação: “Aqui, muitas vezes, passa uma pessoa que eu nem nunca vi e falo: ‘ei, chega pra cá’. A gente nunca viu, mas tem prazer de conhecer pra ver como é a conversa daquela pessoa”.

A vida em sua terra lhe impôs ofícios que exigiam muito esforço. “Era aquela luta”, lembra. Mas isso não o contrariava: “Eu gostava de trabalhar”. Além de agricultor, Zé foi tropeiro e hoje, como artesão, reafirma a satisfação que lhe traz a labuta: “Deus me livre se não tivesse trabalho!”. Ter a liberdade de ser o dono do seu serviço tornava a execução da atividade muito mais agradável. “É uma coisa dominada pela gente mesmo. Não tem quem manda, quem manda é a gente. Aí cê faz com grandes interesses, enxerga que é uma coisa sua. Acho que tem que se sentir mais é feliz”, diz.

Esse modo de ver o trabalho, entretanto, mudou um pouco quando se tornou cortador de cana em São Paulo. Zé estava com a idade de 28 anos na primeira vez que migrou para lá. “Eu tinha completado só um mês de casado quando fui. Todo ano eu tinha que ir pra lá, não era alegria não”. A “questão do dinheiro”, conta, foi o que o levou aos canaviais: “Aqui a gente trabalhava pra gente mesmo, cê colhia, mas não tinha preço. Aquilo era pra nossa sobrevivência”.

O “lá fora” começou a se instalar no interior, atraindo-o às novidades do progresso. “Todo mundo começou a chegar com um radinho, aí eu pensava: ‘quero um rádio pra mim também’”, lembra. Como o que produzia na roça “não tinha preço”, Zé encontrou nas fazendas de cana-de-açúcar um trabalho em que poderia ter um salário. “A gente recebia mensalmente, então cê tinha como comprar”, explica. Por outro lado, usufruir das novidades do progresso se tornou um preço alto demais. Ele não tinha mais a tranquilidade de viver em sua terra e nem a liberdade de ser o dono do seu serviço.

Na tentativa de não voltar a cortar cana em São Paulo, Zé resolveu tentar fazer do artesanato seu meio de vida em Chapada do Norte. “Cheguei aqui, montei uma marcenariazinha. Inventava alguma coisinha da minha cabeça, fazia uma gamela, um balaio. Pensava à noite e falava: ‘amanhã eu tenho que fazer aquilo’”, conta.

Fazer do artesanato seu meio de vida não era simplesmente uma tentativa de garantir o seu sustento e o de sua família – Zé tem dez filhos. Era, também, um meio de viver ao seu modo e a arte de, pacientemente, esculpir sua realidade. No início, ele encontrou dificuldades para se firmar: “Nos começos, começou não dando certo”. Mas a insistência valeu a pena. Seu empenho lhe tornou um dos vencedores do Prêmio Sebrae TOP 100 de Artesanato. Mais do que a satisfação de ser premiado, o artesanato lhe trouxe o que mais preza na vida: saúde e amizade.

Ver uma ideia sua e simples pedaços de madeira e couro tomando a forma de cadeiras, bancos, mesas, tambores lhe enchem de satisfação: “Tem coisa que não dá nem para acreditar que a gente que fez. Não é que eu cheguei no ponto?!”.

Os tambores que Zé produz ajudam a entoar o ritmo da Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte. É uma criação sua, o tambor – “Eu não sei copiar nada de ninguém, o que eu sei fazer é as coisas minhas mesmo, criar as coisas minhas mesmo” – ajudando a repercutir uma criação do seu povo, a Festa: “Pra mim, ela é uma alegria, porque a gente tem uma coisa diferente pra mostrar, é coisa nascida de dentro da gente mesmo, dentro da família”, diz.

Irmão do Rosário, ele considera fundamental a preservação das características da Festa: “Nós seguramos ela, pra nunca mudar”. É que conservar a congada, a batucada, a cavalhada é uma maneira de não calar a voz que expressa quem eles são. Longe de ser uma tentativa de se trancarem em seus valores e de se afastarem de outras vozes, preservar as tradições é uma possibilidade que têm de deixar vir para fora seu interior.

Os laços formados pela convivência fazem com que fiquem sempre perto um do interior do outro. No Vale do Jequitinhonha, ele conta, é comum encontrar, ao lado, soluções para driblar situações adversas: “Aqui a gente tem o diálogo, porque a pessoa tem que comunicar, chegar para o outro: ‘eu tô sentindo isso, eu tô passando por isso’. Às vezes, numa conversa que ele fala, o outro já sabe uma saída lá na frente, não é verdade? Porque eu dispus a minha fraqueza e ocê compôs a sua bondade pra me ajudar”.

O mesmo laço da convivência que o liga às outras pessoas, ensinando-o que “ninguém vive sozinho” lhe dá liberdade para exteriorizar o que há dentro dele. “Eu gosto muito de escutar a opinião dos outros. Alguma coisa que eu sei, eu passo pra pessoa e alguma coisa que a pessoa sabe, eu também aprendo com ela”, diz.

Dinheiro é necessário, reconhece ele, porém a riqueza que, no seu pensar, dá sentido ao viver vem do cultivo das relações humanas: “A pessoa pode ser pobre, mas é rica se todo mundo confia nela. Nem tudo a gente pode pôr que o dinheiro é as grandes felicidades. Eu quero ter um pouco de dinheiro, mas também quero ter um prazer junto com o meu pessoal”. Com a amizade, acredita, é que se “vai longe”. E Zé do Ponto foi longe sem precisar sair de sua terra. Através do artesanato, teve a oportunidade de ajudar a mudar um pouco a imagem que é feita do Vale do Jequitinhonha. “Falam que aqui é o ‘Vale da Miséria’, mas nosso trabalho tem muita fama nos outros lugares”, diz. Pôde, além disso, estender um conhecimento para além das fronteiras do sertão mineiro: ficar privado da liberdade de deixar seu interior vir para fora pode ser a pior das misérias humanas.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário - Chapada do Norte

O sertanejo Antenor Sales é dono de uma trajetória que, apesar de construída na dureza do dia-a-dia de sua terra, não carrega a fisionomia da rudeza. Seu semblante, ao contrário, exterioriza uma ternura que o seu interior faz toda questão de dividir com aqueles que lhe cercam. Antenor tem os olhos da lucidez e da sensibilidade bem aguçados para enxergar e perceber o que e quem está à sua volta. “A gente nunca quer as coisas pra gente só. Cê deve fazer também para o proveito do povo, bem pra si só não adianta. É fazer pra gente e para o povo”, diz. Compartilhar seu bom êxito nas difíceis empreitadas da vida, para ele, não é apenas uma atitude generosa, mas o reconhecimento da importância do outro em suas conquistas: “Eu plantei com o povo, se eu não plantasse nada com o povo, não tinha nada”.

Nascido na zona rural de Berilo (Médio Jequitinhonha – MG), no ano de 1917, Antenor começou a trabalhar aos sete anos de idade. Já foi tropeiro, negociador de ouro, agricultor, fabricante de cachaça, criador de gado e, hoje, é vendeiro. “De tudo um pouquinho eu mexia”, conta. Dos seus ofícios, não só extraía o sustento, mas também pôde exercitar uma habilidade que considera fundamental nesse mundo: o traquejo para lidar com as confusões do ser humano. “Qualquer pessoa agravou a gente, deixa aquilo passar”, aconselha.

Antenorinho, como é chamado em Berilo, se mantém brando em um mundo que nem sempre o trata com a mesma brandura: “Quando uma pessoa me faz o mal, quando ela me procura, eu faço ela o bem. Eu vou dar escola pra ela. Não vou falar que eu vou matar, eu vou ajudar ela. A morte é pra Deus fazer ela, não é nós não”. O diminutivo, no seu caso, não indica fraqueza, tampouco é uma maneira de diminui-lo. Foi bem novinho, aos 12 anos de idade, que comprou sua primeira fazenda. Forte o suficiente para não ser duro, sua postura serena perante uma realidade conflitante não é reflexo de um modo de ver ingênuo. Antenor está atento às contradições que lhe cercam: “O mundo é muito cheio de confusão, muito cheio de história, ninguém sabe entender ele não. Ninguém nunca fala tudo o que é preciso, uma coisa falta, não tem jeito”. É que, no seu pensar, as contrariedades dessa vida não anulam a satisfação em viver. “O mundo é muito bom, você não deve é acompanhar as confusões de ninguém. Deve mexer no coração seu bom, limpo, não querer nada dos outros. Quem faz a pessoa é ela mesma”, diz.

Mas não foi só com sensibilidade e lucidez que Antenor construiu seu caminho. Com uma criança, é com ternura e sensatez que prefere agir: “Nunca gostei de bater em menino na vida, nunca. Se ele estiver errado, a gente está junto mais ele. No menino, a gente dá um beijo e um conselho, que de fato é mesmo. Não deve bater não, porque o menino sente. O que resolve você bater? Nada! Ele fez errado, chama ele à atenção”. Perante, porém, a necessidade do sustento era a bravura que precisava falar mais alto. Sua ternura, sozinha, não seria capaz de enfrentar a intransigência da realidade do sertão. Como tropeiro, não era nada fácil percorrer outras cidades, em cima de lombo de burro, mata adentro, para vender a cachaça e a rapadura que produzia na lavoura e trazer outras mercadorias. “A vida minha era difícil, nem todo mundo topava ela. Viajava muito com a tropa, dormia mal dormido”, lembra. Brigar com os obstáculos físicos na luta pelo sustento não era o suficiente. Antenor sempre precisou, também, agir com firmeza para não deixar que as complicações do mundo humano roubassem suas conquistas: “Eu quero o meu, o que é dos outros pra mim não serve. Agora: eu ganhei, eu quero. É meu, Deus me olha”.

As vontades da natureza e as imposições da vida ditavam as regras que deveria cumprir no dever de ganhar o pão. Em vez de patrão, era à mata bruta e à sequidão que precisava se curvar: “Nunca fui empregado de ninguém, trabalho por conta própria até hoje”. Mas, mais do que ser o dono do seu serviço, é dele a autoridade que traça o seu caminho. “O jeito meu é o seguinte: eu acompanho o meu modo de vida”, diz. Agindo de acordo com o que pensa, ele peleja, por conta própria também, para servir quem está à sua volta. “Cê não deve abusar de um pobre. Quando eu vejo um rico abusar de um pobre eu não gosto, pra mim é doença. A pobreza já é sofrida e você vai ajudar a sofrer mais? Não pode. Cê tem que caçar um lado de melhora para eles”, diz.

Poder servir o outro, para Antenor, longe de ser uma escravidão, dá mais gosto ao viver. E é servindo sem ser escravizado que ele vai acompanhando o seu modo de ser: “Com todo o sofrer, a vida é boa. Toda vida eu gostei da vida. Toda vida só caçando jeito da vida melhorar cada vez mais pra frente, só caçando melhora. Esmorecer com a vida é que não pode”. Viúvo desde 2009, seu casamento de 70 anos lhe gerou cinco filhos, mas um deles faleceu. Se por um lado ele não se deixa esmagar pelos dissabores desse mundo, por outro se curva à impossibilidade de dominar a realidade. “Quando morre uma pessoa minha, eu não faço barulho, não sou chorador. Eu sinto calado, não apavoro. Cê apavorar, cê chorar não adianta, cê tem que caçar jeito de acertar a vida daquele que morreu”, ensina.

Antenor peleja para “andar direito” e “servir o povo”, mas sem a intenção de, com esse modo de agir, conquistar o altar. “Deus é um sozinho que tem”, observa. Morador de uma região que sabe partilhar seus saberes, ele reprova quem usa de sua vasta instrução como meio de subir no outro para ficar mais alto: “A sabedoria dele põe os outros pra trás. É coisa malfeita”. Porém, quem não deseja ser senhor não aceita, por outro lado, ser escravo: “O povo sai dele, o povo hoje é ativo: acabou! Hoje tem estudo, não está no granfino, mas hoje você pensa que um é tolo e ele é mais ativo que a gente”.

Sem fazer questão de ter a sabedoria que põe os outros para trás, porém sabido o suficiente para se proteger dela, Antenor enxerga na reunião das forças de cada um a única autoridade realizadora. “A gente sozinho não faz nada. Toda coisa só nasce da união”, diz. Uma realidade melhor seria, no seu modo de pensar, a garantia do “pão a todo mundo” e “uma vida mais igual para todo mundo”. Quando fala em igualdade, entretanto, não desconsidera as diferenças da singularidade humana. Ele observa: “Tem nascimento que traz uns de um jeito e outros de outro. Cada um tem uma natureza, ninguém é igual ao outro”.

A garantia de “uma vida mais igual para todo mundo”, longe de desrespeitar as diferenças de cada um, é justamente uma maneira de assegurá-las. “Cada um tem uma natureza”, mas todos têm uma semelhança da qual não se pode escapar: ninguém gosta de ser usurpado. “A raiva é o seguinte: aquilo já vem de natureza. Não tem ninguém mansinho demais. Na hora do abuso, se tem raiva”, diz. A possibilidade de “uma vida mais igual” permite, inclusive, que outras vozes com vontades diferentes se façam valer, o que, ele lembra, não ocorria antes: “A justiça, hoje, tá bem melhor. Antigamente quando um falava era só ele e hoje tem outro pra desmanchar”.

Para Antenor, conquistamos uma relação de mais igualdade com a nossa vida depois de uma certa idade. “O juízo chega mesmo é com 40 anos em diante”, diz. Até lá, a pessoa “quebra muito a cabeça, apanha”. A experiência ensina e aprimora valores: “Escola boa é a do mundo”. Com mais de nove décadas de vida, ele aprendeu que, ao mesmo tempo em que “o homem deve ser uma palavra certa” precisa também fazer valer “justiça certa”. Esse é Antenorinho: por ser grande, sabe ser diminutivo.

Um lugar que, em meio às agruras de uma vida sacrificada pela pobreza material, consegue servir de inspiração e estímulo para gerar êxito no trabalho guarda muita riqueza. Ser moradora de um “vale que corre pouco dinheiro” não impede a artesã Maria Joana Gonçalves Mendes de extrair satisfação do seu ofício. “Eu tenho orgulho do meu trabalho. Quanto mais eu trabalho, mais eu gosto de trabalhar, traz felicidade e divertimento pra mim”, diz.

Joana nasceu no ano de 1945 em Roça Grande, zona rural de Berilo (Médio Jequitinhonha – MG), onde ainda mora. Com sua mãe, aprendeu a tecer e, aos 12 anos de idade, já trabalhava com artesanato. Reconhecida pelo esmero de seu trabalho, ela tornou sua tecelagem conhecida através da participação em feiras e na associação de artesãos de Berilo, além de percorrer cidades do Vale do Jequitinhonha com uma bolsa cheia de colchas, tapetes, panos em cima da cabeça para oferecê-los de porta em porta.

Seu lugar lhe oferece alguns dos recursos que precisa para trabalhar: ambiente que estimula a criatividade e uma parte da matéria-prima. Poder ser “igual a um passarinho voando” é fundamental para que sua cabeça se sinta livre na hora de criar os desenhos que enfeitam as peças. Do material usado em suas produções, Joana só compra o algodão. A tinta utilizada na coloração, ela mesma vai caçar: “Eu ando no mato com machado nas costas e vou tirando casca de angico, tingui”.

Joana não deixa o estigma de “Vale da Miséria”, a que muitas vezes o Vale do Jequitinhonha é reduzido, ecoar em suas palavras: “Tem esse nome, só que não merece ser falado do jeito que é”. Uma coisa é a pobreza material a que o Vale está exposto, outra é limitá-lo, sem considerar outras formas de riqueza nele existentes, à marca da miséria. Um lugar inteiramente miserável não poderia possibilitar o aprendizado de um ofício e nem oferecer um ambiente favorável para realização dele. “O pessoal é pobre, mas é um vale rico”, diz.

A insistência da pobreza em permanecer na sua terra lhe ensinou a via da persistência: “Quem teima, mata a caça”. É teimando que ela, todo dia, caça os meios que fazem a vida valer. “O mundo judia, mas ensina”, reconhece. E Joana aprendeu. Casou e foi feliz junto ao seu marido até que, após 29 anos unidos, ele morreu. Teve 10 filhos, e “Deus colheu dois”. Uma filha faleceu ainda bebê, aos sete meses, de mal de umbigo e o outro filho morreu atropelado, quando estava prestes a completar 21 anos. De tudo o que viveu, ela conclui: “A vida é sofrida, mas é boa”.

Viver sem companhia nenhuma é que Joana não acha bom. O modo de vida de sua terra a fez apreciar outras pessoas por perto: “Aí vem a tristeza, se a gente fica sozinha: ‘ô dó, por que ninguém é ao meu lado?’”. Trabalhar na roça, lembra, “era bom demais” porque, além da satisfação de ver “aquela lavoura, aquele trem mais gostoso de olhar, aquelas plantas tudo boa crescendo”, ela tinha a companhia do marido. “Mesmo sofrendo com mosquito, formiga, solão quente, eu gostava muito porque estavam os dois trabalhando juntos, conversando da vida, fazendo os planos. É uma vida que passou e não volta nunca mais”.

O falecimento de seu marido ceifou a vida de alegria que compartilhava com ele, mas Joana não protestou: “Esse negócio de morte a gente tem que aceitar, não tem escolha”. Rebelar-se contra o que não era possível ser mudado a paralisaria diante daquilo que ela poderia e precisava manter: a sua vida e a de seus filhos. “A gente faz da fraqueza a força”, diz. Foi na dedicação ao artesanato que, além de colher os frutos que garantiam uma parte de seu sustento e de sua família, tirou satisfação e alento para seguir adiante e ajudar a manter a longa vida da tecelagem de Berilo.

Joana reconhece que, diante da morte, nada se pode fazer, mas não abre mão de ajudar a multiplicar a vida. No Vale, aprendeu que aquilo que o individual não pode modificar, a coletividade é capaz de cultivar. É pensando assim que ela e outros artesãos de sua terra ajudam a conservar a longa tradição da tecelagem local: mais de dois séculos de existência. “Enquanto eu aguentar, eu tô tecendo”, avisa. Muitas vidas ajudaram a manter os muitos anos de vida do artesanato têxtil de Berilo que, por sua vez, já deu vida a muitos que a ele se dedicaram. Se essa dedicação não os enriqueceu materialmente, contribuiu, entretanto, para tornar rica a cultura local. E mais: fez dela uma riqueza que, ao contrário de se esgotar, cresce quando compartilhada.

No chão de sua vida, Ambrosina Dias da Cruz costura virtudes e faz com que uma se equilibre na outra. Da humildade que não a deixa se esquecer da importância de uma terra firme para caminhar, colocando-a em contato com seu próprio valor, nasce a simplicidade que a ensina a não necessitar ser elogiada: “Tenho medo do elogio, de ficar orgulhosa. Eu gosto de reconhecimento e isso é diferente”.

Ambrosina nasceu no ano de 1917, em Diamantina (Alto Jequitinhonha – MG), cidade onde mora. Ela aponta como razão de sua vitalidade e longevidade a postura ativa que mantém desde menina: “Minha vida foi cheia de serviço, por isso estou bem de saúde”. Já foi doceira, costureira e “até pegava na enxada”. Nas atividades na Igreja encontrou o trabalho que lhe traz satisfação. Lá, aos nove anos de idade, começou a cantar. Ajudou, com as Pastorinhas de Diamantina, a arrecadar fundos para construir a Capela de Nossa Senhora da Consolação. Apresentando-se nas ruas da cidade, as meninas-pastorinhas cantavam e dançavam, acompanhadas pela orientação e pelo acordeon de Ambrosina. O grupo terminou em 2009, mas pôde deixar registrado, em CD, um pouco do seu trabalho. Os 50 anos em que permaneceu com as Pastorinhas não abandonam suas lembranças: “Tenho muita saudade. Eu gostava demais”.

Durante 50 anos, Ambrosina se apresentou com as Pastorinhas nas ruas de Diamantina

De seu otimismo, ela colhe o prazer para viver. A vida, afirma, “é cheia de coisas boas, é só saber levar”. A lucidez que sustenta sua visão otimista lhe dá, também, coragem para não temer o fim. “Quando alguém morre, penso: foi?! Eu também vou. Ah, pode falar: a parte real de nossa vida é a nossa irmã morte. Na hora que você nasce, você já está morrendo. Deus põe na mão da gente uma vela da proporção da vida que vamos viver. Quando acende a vela, já estamos morrendo”, diz. Para quem é senhora de si mesma, servir o outro é uma grata oportunidade de expressar e dividir seu afeto, além de poder se livrar da prisão do egoísmo: “Me fechar, me trancar em mim, isso não! O que sei e tenho, eu divido. Ah, o prazer de servir: que alegria me dá!”.

Ficar trancada em si mesma não apenas tira o prazer de servir, como também pode impedir a convivência com uma postura que Ambrosina considera fundamental: “Dizer a verdade, somente a verdade”. É saindo de dentro de si, é não escondendo dentro dela fraquezas que ela deixa sua naturalidade se expressar: “Ah, eu era ranzinza. Não vou falar que só sou santa não. Eu também sou desconfiada, desapontada”.

Desconfiada de um lado, porém confiante por outro, Ambrosina repele a hesitação que duvida do êxito. Quando nos lançamos a uma empreitada, ela ensina, “não é pra dizer: ‘se der certo’, tem que tirar o ‘se’. Tem que dizer assim: ‘vai dar certo!’”. Como amiga de sua terra e artista de rua, foi ganhando o reconhecimento de onde tira estímulo para, no cultivo de um modo simples de viver, colher vida do seu chão.