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Posts Tagged ‘Chapada do Norte’

Terra pode ser poeira, solo, chão, pátria, o “meu lugar”, mundo: são muitos os seus sentidos. Nela produzimos nosso alimento e garantimos o sustento do nosso corpo. Por outro lado, é através dela que sepultamos a existência que ela mesma ajudou a manter. Muitos sentidos brotam da terra, mas é pelo mesmo caminho que todos transitam: o da vida.

Não é apenas no alimento produzido pelo chão que a vida se faz presente. Da relação entre homem e terra nasce um modo de viver, uma cultura. Foi na realidade da roça que Olímpio Rodrigues Soares se construiu e se diplomou alguém. Nascido no município de Chapada do Norte (Médio Jequitinhonha – MG) no ano de 1937, ele conhece o dia-a-dia da lavoura desde bem cedo. “Eu comecei a trabalhar de pequeno e fui continuando”, conta.

Olímpio aprendeu a semear sua existência no mundo quando ainda era menino. Para sobreviver, não teve escolha: precisou transformar a realidade que o castigava em sua aliada, fazer da vivência sua matéria-prima de conhecimento. Sobre a experiência de viver, ele conclui: “A prática engole a teoria, se não tiver a prática. Então, a escola do mundo eu acho que seria a melhor, além do estudo, porque precisa ter, mas a do mundo é boa também”.

Quando Olímpio fala do que a realidade de seu dia-a-dia o fez aprender se refere, também, ao que sua mãe lhe ensinou: “Eu não tinha pai, minha mãe que criou nós. Era bastante filho e ela deu conta de nós tudo criado. Então, a gente deve essa obrigação aos criadores da gente que souberam, no sofrimento, amar a vida”. Mais tarde, na condição de pai, Olímpio pôde prolongar o saber que fez sua mãe encontrar uma maneira de colher solução de um chão de impossibilidades: “Meus filhos foram criados um ajudando o outro, um socorrendo o outro. Isso vem desde esse começo: minha mãe criou nós fazendo do mesmo jeitinho, um vestindo a roupa do outro”, lembra. Os impedimentos do dia-a-dia, no Vale do Jequitinhonha, entrelaçam a vida de cada um e inspiram em todos a vocação do convívio. “A vida da gente é um laço, é uma boia. É uma história muito prolongada”.

Mas não foi somente o modo de viver de sua terra que inspirou seus caminhos na vida. Olímpio precisou reconstruir referências que esse modo de viver ainda não enxergava. Ele percebeu que era preciso, em alguns casos, enveredar suas percepções a uma direção diferente da que já estava traçada. A ele, quando jovem, foi ensinado que, em qualquer situação, era dever ser respeitoso: “Na minha criação, o velho falava e só o novo é que tinha que respeitar, eles não lembravam que o velho tinha que dar respeito, era o novo que tinha que respeitar, sempre era o novo que faltava respeito”. Foi justamente por desconsiderar esse modo de agir dos mais antigos que Olímpio encontrou uma maneira de fazer valer o que lhe era exigido: “O velho tem que dar respeito primeiro para o novo porque se eu não te respeitar, você não vai me respeitar, então eu tenho que começar primeiro a respeitar a pessoa. E esse respeito é que faz crescer e faz amizade e firmeza na vida da família, porque um respeitando o outro, o pai tem respeito ao filho”, diz.

A necessidade de desbravar caminhos em terras ainda inexploradas se impôs como um incessante trabalho para Olímpio, sem garantia de férias, folga, salário. Porém, foi à custa dessa renúncia que ele criou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Chapada do Norte e conquistou outros direitos que lhe pareciam irrenunciáveis. A participação de Olímpio no sindicato, atualmente, é de associado, mas sua permanência na diretoria durou quase duas décadas. “Nesses 18 anos que eu fiquei nesse movimento da sociedade, não tinha nada que eu fazia por dinheiro, eu não tinha salário, minha mulher mais os meus meninos é que trabalhavam, é que faziam a roça. Às vezes eu chegava, ajudava um, dois dias, daqui a pouco ligava um telefone: ‘você tem que tá em Brasília tal dia, você tem que tá em Belo Horizonte tal dia’ e eu nunca senti, pra falar assim: eu tomei prejuízo”, lembra.

A decisão de fundar o sindicato partiu da dificuldade que, certa vez, encontrou para conseguir atendimento médico em Belo Horizonte para uma irmã. No hospital, Olímpio apresentou à funcionária uma comprovação de sua contribuição ao sindicato patronal, acreditando que facilitaria a liberação na internação. Mas o documento produziu um efeito oposto do que ele esperava. A funcionária deduziu que, por Olímpio estar registrado naquele sindicato, era o patrão de sua irmã e, portanto, ela não poderia receber o atendimento. Não fosse Olímpio ter levado seu atestado de pobreza e o número do telefone de um médico que confirmou a carência deles e que eram trabalhadores rurais, a funcionária não teria liberado a internação. Ele reproduz o diálogo com ela: “Por que você paga esse sindicato? Lá não tem trabalhador não? Uai, falei: ‘tem sim’! E por que você paga esse sindicato? Cê tem que ter um sindicato seu: Sindicato do Trabalhador Rural”. A partir daí, deu início à peleja: “Aí eu arregacei a manga da camisa, achei muita ajuda, tinha um padre aqui que ajudou, bispo me ajudou, muitos companheiros me ajudaram”, conta.

A fundação do sindicato era tanto a afirmação do direito de se reconhecerem tal como são, como também uma possibilidade de abrir caminho para a garantia de outros direitos. “Eu tomei coragem, vi que a gente precisava abraçar mesmo. Porque se a gente não abraça, hoje a gente tava vivendo do mesmo jeito que vivia daquela época. Chegava uma pessoa e falava: ‘cê tem que fazer isso!’ Cê tinha que fazer mesmo, não passava a saber se faz bem ou se faz mal. ‘Cê tem que comer isso!’ Tinha que comer mesmo. ‘Cê tem que fazer esse serviço aí!’ Cê tinha que fazer mesmo. Hoje não!”, diz.

Durante sua atividade no sindicato, Olímpio conheceu de perto uma realidade vivenciada por grande parte dos homens de sua região. No Vale do Jequitinhonha, muitos, ainda hoje, migram para outros estados e lá trabalham como cortadores de cana, em busca da renda que não encontram em suas cidades. Quando viu as condições de trabalho nos canaviais, Olímpio ficou desolado. “Conheci coisa de fazer tristeza. Eu chorei, eu falei: ‘isso que é corte de cana!’ Chorei porque meu filho tinha cortado cana”, lembra. Olímpio foi um dos poucos homens do Vale que não trabalhou nessas fazendas. “Eu não cortei cana porque eu já estava no sindicato. Aí eu já fui uma pessoa pra defender esses trabalhadores e nós conseguimos ajudar esses trabalhadores”, diz.

Olímpio no engenho de sua roça: é nela que ele colhe vida

Antes de fundar o sindicato, ele chegou a trabalhar em São Paulo como pedreiro, mas foi por pouco tempo. “Fui duas vezes, trabalhei três meses de cada vez que eu fui. Era eu arrumar a mala e passava desejo. Então, não tá me ajudando, porque se eu não tô devendo, eu vou ganhar dinheiro e passo a dever… Aí parei”, conta. Decidido a deixar de ir a São Paulo, Olímpio encontrou uma solução para ficar de vez em Chapada do Norte: “Eu acostumei a ficar sem dinheiro”.A saída que encontrou não foi exatamente acomodar-se a uma vida de privações. Sua escolha foi a de ficar junto de sua família e, para isso, assim como em São Paulo, era necessário trabalhar duro. Só que o fruto desse trabalho não seria o dinheiro que ganharia na capital paulista, mas a tranquilidade de morar na sua terra. “Fiz um voto a Nossa Senhora Aparecida para me dar um jeito de eu viver aqui e parece que ela falou amém. Fui mexer com as cabecinhas de gado, trabalhando, vivendo só aqui na minha roça, eu mais minha mulher e acabamos de criar nosso filhos”, lembra.

Deixar de migrar para outros estados, como fez Olímpio, era – e ainda é – uma decisão incomum entre os homens de sua região. A renda que lá podem conseguir é capaz de dar o sustento que a roça, sozinha, muitas vezes não pode oferecer. Ele ressalva, porém, que a escolha de abrir mão dessa renda visava apenas respeitar seu modo de pensar: “Não era que eu pensava em querer ser diferente dos outros. Eu não tava querendo fazer diferente deles ou mais que eles. Só que a minha opinião era aquela”.

O fato de ter decidido ficar em Chapada do Norte, longe de destacá-lo dos outros homens, ajudou a manter o “laço” entre eles e a não romper a “história prolongada” do povo de sua terra. Justamente por ter um modo de pensar que, naquela ocasião, não coincidia com o da maioria, pôde voltar à sua cidade e manter um contato ativo com as questões que a cercavam. Não era apenas a sua presença em Chapada que ajudava a conservar o vínculo entre eles. Olímpio lançou mão de novas referências com a intenção de não permitir morrer aquilo que, para ele, precisava ser mantido entre seu povo: a união.

Para Olímpio, conhecer outras formas de pensar foi fundamental para fazer valer o “um pelo outro” da sua terra. Foi com a ajuda delas, inclusive, que ele criou o sindicato e pôde trazer melhorias ao trabalhador rural. “Eu encontrei chance no trabalho da Igreja e no trabalho das pessoas amigas que vinham de fora com outras ideias e saíam com a gente pra fazer pesquisa. Aquilo ali foi me dando gosto, amor. Então, a gente ia aprendendo com essas pessoas”, conta. A intenção era usufruir dessas ideias, porém sem deixar que elas fossem soberanas. As pessoas de fora muito contribuíram para as conquistas do povo de Chapada, explica Olímpio, entretanto isso não as tornava donas da liderança: “A gente tinha as pessoas de mais grau junto com nós, mas quem puxava era a gente, quem chegava e batia na matéria era o sindicato, era o presidente que chegava primeiro”.

Apesar de o líder ser representado por uma pessoa, o modo através do qual exerciam essa liderança reafirmava o sentido de união deles. “Tem que ter essas parcerias. É pra resolver alguma coisa, pra tomar uma decisão, vamos reunir tudo porque, se errar, não erra um só, erra o grupo inteiro. Quando erra um só é mais difícil de resolver e quando erra tudo junto não tem ninguém pra ficar com pavor, que ‘eu sou culpado’”, diz.

Há, entre Olímpio e sua terra, uma bela relação de reciprocidade. Dela, ele retira a resistência para as pelejas da vida e, labutando nela e, por ela, devolve a resistência da qual justamente necessita: “Eu tô com problema de coração, mas quando eu tô dentro da minha roça eu tô são. Então, por isso que eu acho que na roça a gente tem uma fortaleza”. O exercício dessa troca, entretanto, já foi mais prazeroso, ele lembra: “Quando a gente começou aquela vida, a resistência era outra. Antes, tinha uma diferença aqui: a gente trabalhava era cantando. Vinha até à porta do dono da roça, dançava a noite inteira. Cozinhava tudo num tacho grande pra pessoa comer e beber cachaça. Era uma alegria”.

A “resistência era outra” em sua terra, diz Olímpio, mas, ainda assim, mantém com ela a mesma relação de afeto. “Eu amo o meu lugar, eu amo o povo do meu lugar. Até as estradas que eu passo, tem dia que eu tenho saudade delas”, declara. A satisfação em ser simplesmente um pedaço do Vale do Jequitinhonha é o que faz o seu sentimento pelo lugar de onde veio ser inteiro. A Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte é uma forma da cidade, todo mês de outubro, expressar esse amor e de cada um celebrar o que todos são. Atuante na organização da Festa, Olímpio é o Rei dos Mouros e o procurador-geral. Mas também passou por outros cargos: “Eu já fui o presidente, o tesoureiro”.

Todo esforço que Olímpio empregou, especialmente em sua atividade no sindicato, abriu caminhos para que o povo do seu lugar pudesse valer-se daquela conhecida frase: “na minha terra isso tem outro nome!”. Ter o direito de construir sua identidade não era o bastante: era preciso poder expressá-la. “Então a gente passou a saber, passou para o povo que a gente é um brasileiro, que qualquer forma que nós somos, nós somos brasileiros”, diz.

É por essa conquista que, até hoje, Olímpio trabalha. Atualmente, ele é tesoureiro do Campo Vale (Centro de Assessoria aos Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha) e, embora somente associado ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, a diretoria ainda o procura para “tomar orientação”. É requisitado, também, por algumas universidades, onde dá “aula de experiência”.

Para os que vêm agora, ele deixa de herança grande parte do terreno cultivado e o conselho que tomou para si mesmo quando iniciou: “Tomou amor por aquilo que você começa, se parar, toma prejuízo. Por exemplo: você caminhou cinco léguas, se não caminhar aquela uma légua, perdeu as cinco que caminhou. Aí já vai voltar pra trás”. Cabe, aos que darão prosseguimento a essa caminhada, a essa “história prolongada”, saber, como fez Olímpio, enveredar por direções diferentes das traçadas quando necessário. “A pessoa quando tá começando, dá muitas erradas. Dá opinião errada, segue algumas coisas erradas. Só que tudo o que ela errou, tem que valorizar pra não poder errar mais” e não deixar morrer aquilo de onde colhemos
vida: a terra.

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Quem é como o artesão Zé do Ponto, nascido e criado no interior, não gosta de ser sozinho. Ninguém se constrói sem ninguém, assim ele aprendeu a pensar. Zé nasceu em Chapada do Norte (Médio Jequitinhonha – MG), no ano de 1949, com o nome de José Sebastião Vaz. Passou a conhecer melhor a vida que gosta quando começou a trabalhar na roça do seu pai. “Com 12 anos já estava na luta. Mexia com plantação, fazia lavoura”, conta. A função de lavrador proporcionou a ele, além do aprendizado de um ofício, um modo de vida que dava espaço para seu interior falar. “Eu gostava demais. Pra mim, era o meu prazer. Eu nem pensava, naquele tempo, em namorada. Pensava mais em ter amizade, no diálogo com os amigos”, recorda.

Zé firmava, na lida, laços que só uma conversa de íntimo para íntimo pode construir. “Tinha aqueles amigos que a gente contava um caso e morria ali. Era amigo mesmo. Cê podia sumir, ficar um, dois anos fora que, quando você voltava, era o mesmo amigo. A pessoa tinha aquela amizade profunda com a gente”, lembra. Depois, porém, que “o pessoal começou a andar no mundo, a conhecer como é lá fora”, o interesse em conhecer o que há dentro do outro foi diminuindo. “Hoje você pega uma amizade, quando é amanhã a pessoa tá olhando você de lado”, diz.

Nas cidades grandes, Zé diz não ver as pessoas partilhando-se umas das outras. Elas se trancam, não se deixam desvelar. “Lá fora ninguém dá muita confiança para o outro. É aquele negócio: ninguém conhece ninguém”. Já em Chapada, a possibilidade de contato com alguém desconhecido é motivo de satisfação: “Aqui, muitas vezes, passa uma pessoa que eu nem nunca vi e falo: ‘ei, chega pra cá’. A gente nunca viu, mas tem prazer de conhecer pra ver como é a conversa daquela pessoa”.

A vida em sua terra lhe impôs ofícios que exigiam muito esforço. “Era aquela luta”, lembra. Mas isso não o contrariava: “Eu gostava de trabalhar”. Além de agricultor, Zé foi tropeiro e hoje, como artesão, reafirma a satisfação que lhe traz a labuta: “Deus me livre se não tivesse trabalho!”. Ter a liberdade de ser o dono do seu serviço tornava a execução da atividade muito mais agradável. “É uma coisa dominada pela gente mesmo. Não tem quem manda, quem manda é a gente. Aí cê faz com grandes interesses, enxerga que é uma coisa sua. Acho que tem que se sentir mais é feliz”, diz.

Esse modo de ver o trabalho, entretanto, mudou um pouco quando se tornou cortador de cana em São Paulo. Zé estava com a idade de 28 anos na primeira vez que migrou para lá. “Eu tinha completado só um mês de casado quando fui. Todo ano eu tinha que ir pra lá, não era alegria não”. A “questão do dinheiro”, conta, foi o que o levou aos canaviais: “Aqui a gente trabalhava pra gente mesmo, cê colhia, mas não tinha preço. Aquilo era pra nossa sobrevivência”.

O “lá fora” começou a se instalar no interior, atraindo-o às novidades do progresso. “Todo mundo começou a chegar com um radinho, aí eu pensava: ‘quero um rádio pra mim também’”, lembra. Como o que produzia na roça “não tinha preço”, Zé encontrou nas fazendas de cana-de-açúcar um trabalho em que poderia ter um salário. “A gente recebia mensalmente, então cê tinha como comprar”, explica. Por outro lado, usufruir das novidades do progresso se tornou um preço alto demais. Ele não tinha mais a tranquilidade de viver em sua terra e nem a liberdade de ser o dono do seu serviço.

Na tentativa de não voltar a cortar cana em São Paulo, Zé resolveu tentar fazer do artesanato seu meio de vida em Chapada do Norte. “Cheguei aqui, montei uma marcenariazinha. Inventava alguma coisinha da minha cabeça, fazia uma gamela, um balaio. Pensava à noite e falava: ‘amanhã eu tenho que fazer aquilo’”, conta.

Fazer do artesanato seu meio de vida não era simplesmente uma tentativa de garantir o seu sustento e o de sua família – Zé tem dez filhos. Era, também, um meio de viver ao seu modo e a arte de, pacientemente, esculpir sua realidade. No início, ele encontrou dificuldades para se firmar: “Nos começos, começou não dando certo”. Mas a insistência valeu a pena. Seu empenho lhe tornou um dos vencedores do Prêmio Sebrae TOP 100 de Artesanato. Mais do que a satisfação de ser premiado, o artesanato lhe trouxe o que mais preza na vida: saúde e amizade.

Ver uma ideia sua e simples pedaços de madeira e couro tomando a forma de cadeiras, bancos, mesas, tambores lhe enchem de satisfação: “Tem coisa que não dá nem para acreditar que a gente que fez. Não é que eu cheguei no ponto?!”.

Os tambores que Zé produz ajudam a entoar o ritmo da Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte. É uma criação sua, o tambor – “Eu não sei copiar nada de ninguém, o que eu sei fazer é as coisas minhas mesmo, criar as coisas minhas mesmo” – ajudando a repercutir uma criação do seu povo, a Festa: “Pra mim, ela é uma alegria, porque a gente tem uma coisa diferente pra mostrar, é coisa nascida de dentro da gente mesmo, dentro da família”, diz.

Irmão do Rosário, ele considera fundamental a preservação das características da Festa: “Nós seguramos ela, pra nunca mudar”. É que conservar a congada, a batucada, a cavalhada é uma maneira de não calar a voz que expressa quem eles são. Longe de ser uma tentativa de se trancarem em seus valores e de se afastarem de outras vozes, preservar as tradições é uma possibilidade que têm de deixar vir para fora seu interior.

Os laços formados pela convivência fazem com que fiquem sempre perto um do interior do outro. No Vale do Jequitinhonha, ele conta, é comum encontrar, ao lado, soluções para driblar situações adversas: “Aqui a gente tem o diálogo, porque a pessoa tem que comunicar, chegar para o outro: ‘eu tô sentindo isso, eu tô passando por isso’. Às vezes, numa conversa que ele fala, o outro já sabe uma saída lá na frente, não é verdade? Porque eu dispus a minha fraqueza e ocê compôs a sua bondade pra me ajudar”.

O mesmo laço da convivência que o liga às outras pessoas, ensinando-o que “ninguém vive sozinho” lhe dá liberdade para exteriorizar o que há dentro dele. “Eu gosto muito de escutar a opinião dos outros. Alguma coisa que eu sei, eu passo pra pessoa e alguma coisa que a pessoa sabe, eu também aprendo com ela”, diz.

Dinheiro é necessário, reconhece ele, porém a riqueza que, no seu pensar, dá sentido ao viver vem do cultivo das relações humanas: “A pessoa pode ser pobre, mas é rica se todo mundo confia nela. Nem tudo a gente pode pôr que o dinheiro é as grandes felicidades. Eu quero ter um pouco de dinheiro, mas também quero ter um prazer junto com o meu pessoal”. Com a amizade, acredita, é que se “vai longe”. E Zé do Ponto foi longe sem precisar sair de sua terra. Através do artesanato, teve a oportunidade de ajudar a mudar um pouco a imagem que é feita do Vale do Jequitinhonha. “Falam que aqui é o ‘Vale da Miséria’, mas nosso trabalho tem muita fama nos outros lugares”, diz. Pôde, além disso, estender um conhecimento para além das fronteiras do sertão mineiro: ficar privado da liberdade de deixar seu interior vir para fora pode ser a pior das misérias humanas.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário - Chapada do Norte

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